Relational Spaces: where does a conversation lie?, Gabriela Vaz-Pinheiro

(English version soon)

“Espaços relacionais: where does a conversation lie?” [i]

Gabriela Vaz-Pinheiro

Esta comunicação procurará aprofundar o debate sobre o lugar e a identidade para além da habitual crítica à sitío-especificidade baseada na imutabilidade da relação entre a obra e o lugar. Interessar-me-á falar sobre identidade, tendo em conta que esta não é justificativo de determinadas (e determinantes) funções sociais, mas antes encarada enquanto motor de uma postura crítica em relação à cultura e, no meu caso em particular, em relação à prática artística. Por outro lado, interessar-me-á também falar da ideia de lugar – ou lugares – não enquanto fantasia cultural mas sim enquanto locus representativo da fluidez da cultura ela mesma.

Com base nas ideias postas em circulação pela estética relacional, tem-me interessado desenvolver o conceito de “prática relacional”, termo apropriado dos campos da antropologia, psiquiatria e psicologia para o território da arte e do pensamento crítico. Conversar, presenciar, documentar e passar testemunho podem então ser consideradas metodologias artísticas relevantes.

Até aqui, na verdade, nada de novo, já Hal Foster no seu “Return of the Real” nos dá conta deste processo de apropriação tanto por via metodológica, em particular referindo-se à viragem etnográfica, como em termos referenciais. Vejamos uma das suas famosas frases:

“Recentemente a antiga inveja do artista entre os antropólogos voltou-se ao contrário: uma nova inveja do etnógrafo consome muitos artistas e críticos. Se os antropólogos queriam explorar o modelo textual de interpretação cultural, estes artistas e críticos aspiram ao trabalho de campo em que a teoria e a prática parecem reconciliar-se.” (Foster, 1996: 181)

Mas como validamos o alargamento dessas acções para o campo da estética e como evitamos romanticizar os efeitos das práticas artísticas envolvidas com o social?

Darei alguns exemplos de artistas que investigam processos de intercâmbio (baseados ou não em intercâmbio comercial) como um objectivo para a sua produção artística e procurarei explorar modos de reconsiderar a natureza da nossa relação com o espaço público reconsiderando a própria natureza desse mesmo espaço.

Não gostaria de prosseguir, no entanto, sem primeiro procurar desfazer alguns equívocos. Primeiro, que os artistas envolvidos com o domínio do social não possuam objectivos de natureza comercial, segundo, e em consequência, que o trabalho de natureza comercial não possa envolver-se com o social, e finalmente que a obra envolvida com o social possa (por vezes, mesmo se pense que deva) actuar como profilaxia sobre o mesmo domínio do social. Neste sentido, defendo que uma prática relacional não tem necessariamente que produzir diálogos amenos ou consensuais mas antes levantar questões e apontar contradições intrínsecas à própria sociedade ou às suas questões críticas, e é este factor que levanta dificuldades de entendimento oriundas tanto do sistema político, confundido e tantas vezes indissociável do sistema de apoio às artes, como, em certos sectores, do sistema da arte ele mesmo.

Citemos Grant H. Kester, traduzindo um pouco livremente a partir do seu livro “Conversation Pieces”:

“O conceito de experiência estética desenvolvida pelos filósofos da primeira modernidade tal como Baumgarten, Kant e Wolff, é definido em termos de uma potencial comunicabilidade que não está necessariamente ligada às obras de arte per se.” (Kester, 2004: 89)

Kester está a querer dizer que a experiência do belo ou do sublime, por exemplo, em Kant pode ser desencadeada também por fenómenos naturais, e que, neste sentido, a arte se apropria dos mecanismos de comunicabilidade da natureza e dos fenómenos naturais para nos levar a experienciar o belo ou o sublime.

Servindo-se da voz de Cascardi, Kester continua: “Foi Hegel (…) quem restringiu a definição do estético a uma classe específica de objectos que são encarados como objectos culturalmente produzidos.” (ibidem)

A questão, quanto a mim, coloca-se de forma mais pertinente se pensarmos que a cultura contemporânea, na verdade, inclui no seu conceito mais vasto de “construção cultural” também tudo quanto possa ser natural. Ou,  se pensarmos como a própria noção narrativa da paisagem se pode, por outro lado, sobrepor ao seu sentido vivencial. Ou ainda, por outro lado, se pensarmos como a própria noção de experiência ou objecto artísticos potencialmente os pode tornar indistinguíveis de outros objectos ou experiências mais ou menos quotidianos e por vezes mesmo “naturais”, e, assim sendo, o exercício de definição dos objectos segundo as suas, a saber: categorização formal e construção cultural, implica que, como é óbvio, nem todos se podem considerar arte mas que alguns que o possam não parecer podem de facto insuspeitadamente instigar uma experiência estética.

Argumentaria, no entanto, que é a própria experiência estética de que falamos que necessita de ser excluída de um sistema categórico fixado em termos de um pressuposto de indução[ii]; a própria experiência estética, dizia, poderia passar a ser encarada em termos de valências, que o gosto pode ou não incluir, mas que em todo o caso existem em absoluta independência do mesmo, baseando-se em objectivos de natureza crítica e/ou social.

O primeiro desafio seria então que estes objectos possam ser distinguíveis não só do quotidiano, tal como os artistas conceptuais defenderam, mas de práticas de cariz social medidas em funções instrumentais. Um desafio e um perigo. Deixemos o perigo para uma outra instância e comecemos então por procurar aprofundar o desafio. No seu Esthétique Relationelle, Nicolas Bourriaud dá-nos conta da importância e da consequência operativa de uma forma de trabalhar que potencie “(…) as relações entre pessoas e o mundo, sob a forma de objectos artísticos.” (Bourriaud, 2002: 42) [iii].

Sabemos que a antropologia utiliza o modelo textualista de entendimento das culturas, sabemos pelo menos que a nova antropologia identifica o outro (os outros) com base na consciência de que todas as representações implicam uma construção e de que os indivíduos constroem o seu estatuto identitário a partir de uma localização, primeiro num sistema de relações económicas, a que se segue a realização do sujeito enquanto parte de uma identidade cultural (Foster, 1998).

Mas também sabemos que a desconfiança de um modelo textual como forma de descodificar as relações humanas, e no geral a desconfiança dos sistemas semânticos como forma de partilha de significado, têm ocupado muita da produção de pensamento das últimas décadas, e não somente pela mão de Bourdieu, aparentemente ao mesmo tempo que o fascínio pela estética relacional ganhava consistência. Como é que se entende, então, que quase em simultâneo com uma generalizada apreensão metodológica que coloca em suspenso a ordem simbólica nascente da ‘ideologia do texto’ a partir da viragem linguística e estruturalista dos anos 60, muitos artistas e pensadores adoptem o modelo que articula a prática das culturas com a ‘cultura como texto’ e a ‘identidade como construção representacional’, procurando assim justificar a sua ambição da interdisciplinaridade?

Uma das respostas parece partir da insatisfação com o facto de que muita da teoria e mesmo crítica da arte se detêm a debater a obra de arte e não a prática artística ela mesma, isto é, falam “do objecto como ele é assumido pela economia geral, e não da sua própria economia.” (Bourriaud, 2002: 42)

No entanto, parece importante estabelecer alguns limites para esta procura de debater um objecto apenas a partir da sua economia intrínseca. Na verdade, Bourriaud diz mais à frente:

“Todo o artista cujo trabalho parta da estética relacional possui um mundo de formas, um conjunto de problemas e uma trajectória, que lhe pertencem inteiramente. Não estão ligados por nenhum estilo, tema ou iconografia. O que eles partilham é mais decisivo (…) o facto de operarem dentro de (…) um mesmo horizonte prático e teórico: a esfera das relações inter-humanas.”[iv] (Bourriaud, 2002: 43)

O primeiro problema consiste na alegada absoluta pertença do território da obra de arte relacional, por parte do artista. Obviamente, enquanto pressuposto operativo a natureza destas obras até poderá dispensar filiação estilística ou iconográfica, isto é, pode indubitavelmente procurar os seus instrumentos e mediums de acordo com os seus próprios imperativos, por oposição à subscrição ou confinamento disciplinar. Poderia servir-me dos argumentos da Rosalind Krauss acaso esta questão não fosse já por demais óbvia nas práticas artísticas contemporâneas, acaso não fossem já dadas por adquiridas as consequências do campo expandido, de amplitude intermedial inegável. Mas esta suposta independência contradiz o próprio manifesto destas obras. Operar na esfera relacional só pode, quanto a mim, supor o entendimento de uma fluidez de significado, a consciência de que os significados tomados (enquanto matéria de trabalho) e os produzidos pela obra, não circulam apenas no domínio do próprio artista, antes adquirem sentido nessa mesma circulação.

O segundo problema está na assumpção de uma espécie de tábua rasa estilística para estas formas de trabalhar que na verdade possuem raízes em muita arte conceptual, na arte performativa, na ‘social sculpture’ de Joseph Beuys, na própria idealidade com que Apollinaire, na I Guerra Mundial, se alista no exército em jeito de manifesto artístico, para não falar nas questões levantadas pelas já tão faladas viragens etnográficas e antropológicas do séc.XX.

E é o próprio Bourriaud que estabelece uma importante relação, pela via das suas diferenças, nas abordagens a aspectos comunicativos da obra de arte a partir dos anos 80 e na contemporaneidade. Ele diz:

“A obra de arte dos anos 90 transforma o observador (…) num interlocutor directo. É precisamente a atitude desta geração em relação aos processos comunicativos que torna possível defini-la em relação aos seus predecessores. Muitos artistas emergentes nos anos 80, desde Richard Prince a Jeff Koons passando por Jenny Holzer, desenvolveram os aspectos visuais do seu medium, enquanto os seus sucessores demonstram uma preferência por contacto e tactibilidade.” (Bourriaud, 2002: 43)

Desta forma, a componente relacional da obra de arte visa aspectos menos do foro imagético e mais do multisensorial, fazendo justiça ao legado pós-feminista e à vertente artística de cariz etnográfico e antropológico.

Ainda assim, parece-me importante mencionar que pese embora esta ânsia trans-sensorial de algumas destas obras, muitos dos seus resultados não existem sem uma concretização que também passa pelas imagens e pelas estratégias de publicação que delas se servem. Também nestes casos o medium opera não necessariamente de fora de um alegado sistema de estilos ou de um conjunto de temas universavelmente partilhados, porque não é nesta base que ele adquire sentido, mas sim a partir do que a dimensão do social (e do individual enquanto território político) acrescenta à dimensão do estético.

Vejamos por exemplo o que dizem Tacita Dean e Jeremy Millar sobre “(a) prática artística de Rirkrit Tiravanija (que) tem sido fundada sobre o fazer de pequenos gestos, gestos embora que (se) abrem, desvendadores, entre pessoas e ao longo do tempo, atingindo um crescente significado ao fazê-lo.” (Dean and Millar, 2005: 154)[v]. O significado é, portanto, um dado impermanente e pressupõe uma enorme fluidez.

Disse, em outros momentos, como é necessário acomodar um nível de transferabilidade[vi] em formas de trabalhar que pressupõem significados transientes, que se liguem embora a um sentido mais ou menos específico de lugar e/ou da sua não fixidez, se ocupam do que é transferível tanto por via da circulação do objecto artístico dentro e fora do sistema da arte, como por via das passagens de mão do significado autoral e presencial.

A noção de ‘agregação provisória e momentânea de um conhecimento’, a ideia de que a interacção discursiva, fazendo parte da experiência estética, se efectiva ao nível da prática relacional numa base não universalista, encontra-se expressa por Kester, a partir de Habermas, no seu ‘Conversation Pieces’ da seguinte forma:

“O conceito de interacção discursiva segundo Habermas sugere que há duas diferenças chave entre o modelo dialógico e o modelo convencional da experiência estética. A primeira diferença diz respeito à alegação de universalidade (inerente ao segundo modelo) (…). Uma estética dialógica, por  outro lado, não pretende providenciar, ou necessitar, deste tipo de fundação universal ou objectiva. Por outro lado, baseia-se no gerar de um conhecimento local consensual que é agregador apenas provisoriamente e que se enraiza alternativamente ao nível da interacção social.” (Kester, 2004: 111-112)

As peças em vídeo de Kutlug Aterman providenciam um exemplo deste território conversacional, em que os diálogos com o dispositivo tecnológico (a câmara de vídeo) ultrapassam a própria noção de screen (ecrãn) por via de uma espacialização que os coloca em eventual confronto com o espectador. Absortos de uma declarada encenação aqueles diálogos efectivam o contacto com experiências na primeira pessoa, aparentemente apenas mediadas pelas necessárias legendas, a um observador que não fale turco.

Próximas, nas suas metodologias dialógicas, de uma abordagem antropológica, as suas obras interrogam o território do inquérito, da história de vida, do relato na primeira pessoa tão caros às dimensões das ciências sociais.

No seu texto “Anthropology at the Origins of Art History” Matthew Rampley, pergunta:

“Não será possível considerar uma transformação da antropologia do ponto de vista da história da arte, uma transformação aberta às dimensões histórica e estética da etnografia? Esta (…) questão realça as possibilidades da antropologia como prática artística, pois ironicamente, enquanto a interrogação das origens primitivas já não ocupa um lugar central no terreno do debate contemporâneo, tanto histórico como antropológico, permaneceu uma constante na prática artística do século vinte.” (Rampley, 2000: 158)

Isto sugere a efectivação dos cruzamentos territoriais entre antropólogos e etnógrafos, por um lado, e artistas, por outro, a que Foster se referia, mas não responde às inquietações mais intrínsecas da própria prática artística filiada no território relacional. Por outro lado, parece-me que alguma licença processual pode ter lugar nestes cruzamentos, se não procurarmos enquadrar, pelo menos no sentido crítico, a obra de arte que opera a partir de preocupações interdisciplinares.

É o próprio James Clifford, antropólogo, que alerta:

“… redefinem-se os parâmetros do que constitui trabalho de campo, participante/observação, etc. Mas serão as metodologias da etnografia infinitamente expansíveis? Ou será que elas estalam se puxadas demasiado longe?” (Clifford em entrevista in Coles, 2000: 56)

Para tentar interrogar este problema pela via de algumas práticas artísticas gostaria de começar por considerar a questão da audência por duas vias: enquanto testemunhas de um evento ou obra, e enquanto contribuintes activos para, pelo menos em parte, a produção da própria obra.

Esta questão tem uma importância considerável no questionamento da subversão da própria função do objecto artístico relacionado com o espaço arquitectónico ou social, (na verdade, do próprio objecto arquitectónico e urbano), e das questões autorais e de sentido de propriedade social do espaço tanto público como privado.

Mas passemos a alguns exemplos:

Information‘, foi uma exposição no Museum of Modern Art em 1970, e pretendeu ser a primeira exposição de arte conceptual num museu dos Estados Unidos. Hans Haacke, no seu habitual processamento crítico do sistema da arte e das suas instituições, apresentou uma peça em jeito de feedback visual da resposta do público a uma questão da actualidade política daquele momento. Se por um lado, a peça inquestionavelmente conjura um facto do mundo exterior ao museu para o seu interior, em clara contravenção com a sacralidade do espaço expositivo como então ainda era considerado, por outro, a acção do público “fazia” a obra visual e participativamente. Os boletins eram contados e as alterações aos resultados expostas diariamente, modificando a peça e promovendo uma medição necessariamente inexacta mas suficiente para instaurar instabilidade dentro do sistema da arte e da sua relação com a política. De notar que o Governador Nelson Rockefeller era na altura um membro do board of trustees do MOMA estando a planear candidatar-se à corrida das Presidenciais.

“Question:

 

Would the fact that Governor Rockefeller has not denounced President Nixon’s Indochina policy be a reason for you not to vote for him in November?

 

Answer:

 

If ‘yes’

please cast your ballot into the left box

if ‘no’

into the right box.”

Um outro exemplo bem mais recente e que me parece despoletar problemas muito similares ao “Poll” de Haäcke em 1970, é “The House of Osama bin Laden”, uma das peças apresentadas na Tate Britain pelos artistas Langlands & Bell, na sua nomeação para o Turner Prize em 2003. Ben Langlands e Nikki Bell, nascidos em Londres, respectivamente, em 1955 e 1959, trabalham em colectivo desde 1978, explorando relações entre a arte e a arquitectura, e entre as pessoas e o meio construído e codificado em que elas se movem. “The House of Osama bin Laden” responde a um facto histórico contemporâneo da própria obra, e posiciona os artistas (e por via de uma interactividade apropriada dos jogos vídeo, a própria audiência) perante um confronto com a sua própria responsabilidade histórica. A obra consistia na projecção vídeo, em três êcrans, de uma simulação por computador da alegada casa de bin Laden, por cujo espaço interior e circundante o visitante poderia movimentar-se através de um joy stick. Tal como “Poll”, a peça insere um facto da actualidade política no interior da galeria, oferecendo mais ainda comprovativo de como o território operativo da obra de arte também pode afectar o “real” que, na verdade, apenas referencia. A peça foi retirada durante o julgamento por jurados, de um suspeito de crimes alegadamente cometidos no Afeganistão que decorria em Londres, ao mesmo tempo que a exposição. Durante o período da sua retirada, a projecção foi substituída, no espaço escurecido da sala, pela seguinte frase projectada:

“Due to the trial of Faryadi Sarwar Zardad currently in progress at the Old Bailey, this work has been removed temporarily following legal advice.”

Ne verdade, muitos dos artistas que reflectem sobre as funções, particularmente as sociais do objecto artístico, estão também a elaborar um comentário por vezes feroz sobre as narrativas históricas, a sociedade de consumo e os desequilíbrios daquilo a que Frederic Jameson chama o capitalismo global. Como temos estado a ver, estes processos críticos são também incorporados pelas instituições de arte, fenómeno a que Jameson chama “trans-esteticização”. No seu “Postmodernism or the Cultural logic of Late Capitalism” ele escreve:

“O que aconteceu foi que a produção estética de hoje integrou-se na produção geral de bens de consumo: a frenética urgência económica de produzir (…) bens de crescente aparência de novidade (…), confere agora uma crescente e essencial função estrutural (…) à inovação estética e à experimentação. Estas necessidades económicas encontram depois reconhecimento nos variados tipos de apoio instituicional disponíveis para nova arte, desde fundações e subsídios até outras formas de mecenato.[vii]

A forma como as narrativas circulam do espaço público ao espaço expositivo, as formas utilizadas por muitos artistas interessados permitem explorar e articular, dando visibilidade, o questionamento de problemas de uma escala que transcende a própria localização das suas peças, como sejam a democracia ou a distribuição da propriedade. Dennis Adams, por exemplo, usa imagens fotográficas representacionais em conjunção com elementos arquitectónicos para explorar questões como as narrativas históricas e sociais, na sua relação com a consciência e a cultura contemporâneas. Ou, por exemplo, Krystof Wodiczko nas suas continuadas tentativas de sobrepor narrativas pedonais às celebratórias através das projecções sobre edifícios institucionais, ou nas suas reinvenções das funções do objecto artístico ao fazê-lo atravessar territórios, usos e significados.

Disse noutra instância que “(o) que me interessa particularmente são as possibilidades de movimentação da obra e dos sujeitos (criadores e fruidores) por diferentes tipos de espaço, porque nesta movimentação se activam (e re-activam) diversas formas de significado.

Deste modo a desmaterialização do objecto e espaço artísticos é apenas parcial, porque estes nas suas referências à(s) experiência(s) também aspiram à criação de oportunidades de contemplação. Isto é, espaço e objecto admitem sequências de materialidade e do seu próprio desaparecimento.”[viii]

Para tanto é necessário entender que nem a nossa posição no mundo é jamais definitivamente sedentária ainda que nos quedemos no mesmo local por um longo período de tempo, nem o objecto artístico se desvanece completamente na sua componente experiencial, tal como não se esgota em formações fixas. Se aceitamos que nos movemos numa cultura e identidades que mudam constantemente, se aceitamos que a necessidade de permanentemente re-avaliar a nossa postura e o mundo que habitamos, se portanto incorporamos no nosso horizonte crítico a noção pós-feminista da fluidez identitária dos lugares; então o lugar em que aparentemente nos enraizamos não poderá nunca ser imutável e a ausência de movimento não poderá nunca ser considerada verdadeiramente sedentária (Casey).

O poder hegemónico da geografia enquanto sistema sobre as nossas vidas poderá ser constestável, mas a verdade é que “não estamos acima nem para além dela” (Soja) porque não podemos escapar às determinantes de processamento que têm a ver com coisas como o território ou a moeda em uso corrente. E ainda que possamos entender estas e outras determinantes de natureza geográfica que afectam o nosso comportamento e identidades como sujeitas às brutais modificações que as tecnologias da informação lhes aportam, a infindável contradição da locação versus globalidade só aparentemente fica resolvida pelo cruzamento e mobilidade de significado que a linguagem (e os gestos) podem efectivar ainda que apenas nos limites da tradução. E portanto o desenho que fazemos na nossa passagem pelo mundo fará sempre parte daquilo que somos, da nossa composição identitária.

Jonathan Murdoch disse no seu Post-Structuralist Geography:

“O pós-estruturalismo em geografia centra-se nos modos como processos dinâmicos e complexos se movem por entre e através do espaço, modificando entidades espaciais, remodelando relações espaciais.” (Murdoch, 2006:107).

Por isso me interessa aqui realçar a importância de uma prática relacional tendo em conta que formas espaciais diferentes co-habitam no mesmo espaço ou no mesmo território e que na verdade o espaço é, sempre, constituido relacionalmente.

Referências bibliográficas

Bourriaud, Nicolas (2002) [Edição original em francês 1998] Relational Aesthetics, Dijon-Quetigny, Les Presses du Réel, Trad. S. Pleasance e F. Woods

Casey, Edward S. (1998) The Fate of Place, a Philosophical History, Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press

Rampley, Matthew, “Anthropology at the Origins of Art History” in Alex Coles, (Ed.) (2000) Site-Specificity: The Ethnographic Turn, (de-, dis-, ex-, Vol4) London, Black Dog Publishing, pp. 138-163

Dean, Tacita e Jeremy Millar (2005) Art Works: Place, London, Thames & Hudson

Foster, Hal (1996) The Return of the Real, Cambridge (Mass.) and London, The MIT Press

Foster; Hal, (Ed.) (1988) Vision and Visuality (Discussions in Contemporary Culture)N.2 , Seattle, Bay Press

Fredric Jameson, Postmodernism or the Cultural Logic of Late Capitalism (Durham, NC: Duke University, 1991),

Kester, Grant H. (2004) Conversation Pieces: community & communication in modern art; Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press

Murdoch, Jonathan (2006) Post-Structuralist Geography: a Guide to Relational Space, London, Thousand Oaks, New Delhi, Sage

Schneider, Arnd e Christopher Wright (Ed.) (2006) Contemporary Art and Anthropology, Oxford, New York Berg


[i] Publicado em: Sara Matos (ed.) Margens, Arte Contemporânea, Oficinas do Convento, Montemor-o-Novo, 2007, pp.193-202.

[ii] Falo de indução de sensações baseadas no gosto, que a modernidade, no entanto, também limita a um gosto filtrado pelo conhecimento de acesso em si mesmo restrito.

[iii] Utilizo aqui a versão inglesa de 2002 do original de 1998.

[iv] “Every artist whose work stems from relational aesthetics has a world of forms, a set of problems and a trajectory which are all his own. They are not connected together by any style, theme or iconography. What they do share together is much more decisive, to wit, the fact of operating within one and the same practical and theoretical horizon: the sphere of inter-human relations.” (Bourriaud, 2002: 43)

[v] Tradução livre da autora.

[vi] Ver Gabriela Vaz-Pinheiro, “Da especificidade à transferabilidade: debatendo práticas artísticas place-specific” in Boletim da Associação Portuguesa de Historiadores de Arte, nº 1 – Dez. 2003.

[vii]What has happened is that aesthetic production today has become integrated into commodity production generally: the frantic economic urgency of producing fresh waves of ever more novel-seeming goods (from clothing to airplanes), at ever greater rates of turnover, now assigns an increasingly essential structural function and position to aesthetic innovation and experimentation.  Such economic necessities then find recognition in the varied kinds of institutional support available for the newer art, from foundations and grants to museums and other forms of patronage.” Fredric Jameson, Postmodernism or the Cultural Logic of Late Capitalism, Durham, NC: Duke University, 1991, pp. 4-5.

[viii] Da entrevista on-line com Jorge Leandro Rosa, Interact, Revista de Arte, Cultura e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa.